segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O "desnudamento" dos operários da Companhia de Tecidos Paulista


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José Luiz Gomes


Estamos lendo o livro do professor José Sérgio Leite Lopes, "A Tecelagem dos Conflitos de Classe na Cidade das Chaminés", uma tese de doutoramento sobre as relações sociais de produção na Companhia de Tecidos Paulista, na cidade do mesmo nome, localizada na região metropolitana do Recife. O trabalho é o resultado de algumas pesquisas realizadas pelo professor, e outros pesquisadores, acerca das condições de trabalho nas fábricas têxteis mantidas pelo Grupo Lundgren. Não fosse suficiente o interesse do trabalho de José Sérgio, ao abordar o "sistema paulista" - algo que nos estimulou bastante, em razão de um trabalho que estamos produzindo sobre a vida nas vilas operárias - José Sérgio ainda dedicou parte de suas pesquisas aos operários canavieiros do Estado, muitos deles aliciados para o trabalho têxtil nas fábricas da família Lundgren. 

Quanto mais nos aprofundamos nesses estudos, mas descobrimos fatos curiosíssimos, como a engrenagem montada no processo de recrutamento de funcionários para a tecelagem. Curioso não é o adjetivo mais adequado. Pavoroso e assustador se aplicam melhor à situação descrita por José Sérgio. Através de suas lojas de varejo de tecidos espalhados por todo o Estado, a Companhia de Tecidos Paulista conhecia a realidade social e econômica de alguns vilarejos do interior, locais que se constituíam como alvos preferenciais para o início do processo de recrutamento. Através dos seus agentes, o pessoal era previamente selecionado, envolvendo até mesmo algumas situações de clandestinidade, ou seja, algumas dessas famílias literalmente fugiam das condições precárias de trabalho nas usinas dos Estados de Pernambuco e da Paraíba. 

Até geograficamente, era possível delimitar a área de abrangência desse recrutamento inicial. Esses trabalhadores eram literalmente "desnudados", saíam de uma situação precária para entrar numa outra, quiçá, ainda pior. Eram transportados num ônibus com o nome de sopa, um veículo que não oferecia o mínimo de dignidade aos seus passageiros. Ao chegarem na cidade de Paulista, cumpria-se o ciclo das instituições totais, bem ao estilo descrito por Goffman e Foucault. Separados por sexo, em alojamentos ou "depósitos", eram mantidos numa espécie de quarentena, esperando que sua sorte fosse determinada pelo Coronel Frederico Lundgren. Entrevistada pelo autor do trabalho, uma cidadã descreve bem aquela situação, ao se referir ao momento da alimentação: Não tinha refeitório não. A gente comia até na mão mesmo, sentado por riba das camas. A comida era própria nas mãos, era assim mesmo. Era assim como um hospital mesmo.

Sérgio atenta para o cumprimento de um rito - para outros, possivelmente Pierre Bourdieu, uma "teatralização da dominação" - onde eram consolidadas as relações de poder. A começar pela Jardim do Coronel, ou a Casa Grande, mantida pela família no centro da cidade, numa arquitetura milimetricamente planejada com o objetivo de lhes facultar observar todo o andamento dos trabalhos na CTP. Era aqui, e não nas dependências ou escritório da Companhia de Tecidos, onde os operários eram selecionados. Impressionante como essa arquitetura se reproduz em todo conglomerado de indústrias têxteis que se instalaram em Pernambuco. A seleção era feita pelo próprio coronel, pessoalmente, que, a partir da textura das mãos dos futuros operários(e os olhos) determinava o local onde eles seriam locados. "este vai para as caldeiras"; "este aqui vai para o escritório"; "este será vigia". O controle sobre a vida dos operários era onipresente, absoluto. Além do trabalho, os operários recebiam uma chave para residirem numa das casas da vila operária, que, no seu apogeu, chegou a ter 06 mil casas, possivelmente a maior vila operária da América Latina. Um vínculo orgânico, de absoluta dependência, centrado no binômio fábrica/vila operária. 

Alimentos eram adquiridos em armazéns também mantidos pela companhia. parafraseando Gilberto Freyre, ao se referir aos senhores de engenhos do Estado, no livro Nordeste, na época do apogeu do ciclo da cana-de-açúcar, os Lundgrens eram donos das terras, das águas, das matas, das máquinas, das casas, do porto, do aeroporto e das melhores mulheres. Havia uma indisposição política entre Agamenon Magalhães e a família Lundgren. A princípio, em alguns momentos, o grupo de Agamenon e da família Lundgren apoiaram candidaturas distintas no Estado, o que talvez explique, em parte, essas indisposições. Essas divergências se transformariam em ódio, nutrido pelo "China Gordo" em relação à família Lundgren. A matriz disso penso ser mesmo uma idiossincrasia proporcionada pela relações de poder de ambos. Agamenon era o "carrasco de Vargas" no Estado. Em Paulista, os Lundgrens mandavam em tudo, possuindo, inclusive milícia armada e uma grande quantidade de armas. Era um "Estado Paralelo", de porteiras fechadas, onde a lei que prevalecia era a lei da família Lundgren. 


O jornalista Sebastião de Neri comenta que Agamenon pediu o auxílio de um dos filhos - que estudava na Faculdade de Direito do Recife - no sentido de escolher um promotor para aquela cidade. Queria o melhor aluno da turma e um cabra de coragem, de sangue nos olhos, disposto a impor a Lei naquele feudo familiar. Não sabemos se o coitado do promotor foi bem-sucedido em sua empreitada. Mais adiante, quando se pleiteava a emancipação do distrito, que pertencia à cidade de Olinda, o China Gordo ainda tirou uma casquina com a situação. Vamos fazer primeiro uma reforma agrária nas terras dos Lundgrens. Como vamos emancipar uma cidade cujas terras pertencem a uma única família?

Como citar este texto:

SILVA, José Luiz Gomes da. O "desnudamento dos operários da Companhia de Tecidos Paulista (crônica). Pesquisa Escolar do Nordeste. Disponível em: http://pesquisaescolardonordeste.blogspot.com. Acesso em: dia, mês e ano: Ex. 20 Ago.2014.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Joaquim Nabuco, um dândi apaixonado




José Luiz Gomes da Silva

Não nos lembramos bem qual a motivação - possivelmente a produção de um novo artigo - mas algo nos levou a pesquisar a carreira diplomática de Joaquim Nabuco. Descobrimos algumas coisas curiosas, como as escaramuças existentes no interior da diplomacia brasileira, envolvendo o diplomata pernambucano e os seus desafetos naquele Instituto. Desafetos que, aliás, não foram poucos, ao longo de sua vida pública, tampouco ficaram circunscritos ao Itamaraty. O escritor José de Alencar foi um dos seus grandes desafetos, publicando o romance Senhora com o propósito de afrontá-lo. José de Alencar era do Partido Conservador, enquanto Nabuco era de uma família ligada ao Partido Liberal. Ambos não se entendiam muito bem. 

O romance Senhora é a realidade do romance entre Joaquim Nabuco e Eufrásia Teixeira Leite, transformado em ficção literária. Claro, com alguns ingredientes maliciosos, com o propósito de atingir o abolicionista pernambucano. O talento de Alencar, no entanto, disfarça isso tão bem que é possível ler a história sem se preocupar com as essas entrelinhas: Era rica e formosa. Duas opulências que se realçam como a flor em vaso de alabastro. Dois esplendores que se refletem, como o raio de sol no prisma do diamante.

Alguns fatos envolvendo Joaquim Nabuco somente abnegados pesquisadores - com acesso a fontes confiáveis - poderão vir a saber. Assim como acontece com os atores que se projetam em algum campo social, a sua biografia normalmente é construída "apagando-se" algumas informações desagradáveis, que poderiam por em dúvida essas reputações ilibadas. Isso faz parte de uma "estratégia de consagração".Muitas coisas já foram escritas - sobretudo por autores estrangeiros -acerca desse romance entre Joaquim Nabuco e Eufrásia Teixeira, que durou 14 anos, e nunca chegou ao altar. A produção brasileira sobre o assunto ainda é incipiente, mas vem novidade por aí. 

Uma paixão avassaladora, como diriam os poetas. Dois desconhecidos embarcam num cruzeiro no Chimboraso e desembarcam noivos. Um romance recheado de idas e vindas, de atas e desatas e muitas especulações. Eufrásia, ciumenta, não suportava os galanteios de Joaquim Nabuco às donzelas desavisadas. É uma daquelas histórias de amor típicas dos melhores romances de José de Alencar, não fosse pela tentativa de arranhar a imagem do abolicionista pernambucano, à qual o romance Senhora se propôs, embora, certamente, não tenha sido esse o único propósito de Alencar ao escrever aquele livro. O interessante é que, em alguns casos, as atitudes do próprio Joaquim Nabuco desmentiam cabalmente os seus críticos e os parentes de Eufrásia, acostumados com os chamados casamentos "dinásticos" para manter o patrimônio em família. 

Se dizia que Joaquim Nabuco desejava dar o golpe do baú, casando-se com uma jovem herdeira de uma grande fortuna, de uma tradicional família de Vassouras, no interior paulista. Joaquim era uma personalidade muito controversa, cujas contradições iam do campo político ao pessoal. Como explicar, por exemplo, sua vinculação ao Partido Liberal quando a família de Eufrásia era ligada ao Partido Conservador? Vai-se entender um abolicionista convicto envolvido com uma família de escravocratas. O pai de Eufrásia chegou a possuir 150 escravos em sua fazenda de café. 

Para alguns historiadores, talvez resida aqui toda a preocupação de Joaquim Nabuco em não contrair núpcias com a bela Eufrásia. Os reais motivos vão ficar sempre no plano das especulações. Nem mesmo pela vasta correspondência trocada entre ambos, isso fica patenteado. Joaquim nunca demonstrou muito apreço pelo dinheiro, o que no sugerem outras motivações para o envolvimento com Eufrásia.

Por falar em correspondência, de acordo com Eneida Queiroz - em texto publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional - quando romperam o romance, Joaquim Nabuco teria exigido de Eufrásia a devolução das cartas de amor, no que não foi atendido. Queimou-as ou teria sido enterrada com elas. Já as cartas de Eufrásia para Nabuco, segundo algumas informações, poderiam estar no acervo da Fundação Joaquim Nabuco, no bairro de Apipucos, em Recife. 

Uma das principais explicações para o não casamento entre ambos estaria relacionado ao fato de que Joaquim Nabuco não desejasse arranhar a sua imagem de abolicionista. Essa é a hipótese mais provável, levantada por todos biógrafos do escritor pernambucano. Num desses momentos de apertos econômicos, endividado, Joaquim Nabuco recusou a oferta de dinheiro de Eufrásia para saldar algumas dívidas, o que teria determinado o rompimento definitivo entre ambos. 

Com a morte de Eufrásia, como já dissemos, pouco afeito às finanças, mas um dândi incorrigível, Joaquim Nabuco, literalmente, torrou toda a fortuna da falecida. Charmeir dos salões, "Quincas, o Belo", não encontraria muitas dificuldades para gastar a grana.No livro que será lançado pela escritora Ana Maria Machado, Um Mapa Todo Seu, possivelmente os leitores saberão mais detalhes sobre esse relacionamento. O livro promete.


Como citar este texto:

SILVA, José Luiz Gomes da. Joaquim Nabuco, um dândi apaixonado (crônica). Pesquisa Escolar do Nordeste. Disponível em: http://pesquisaescolardonordeste.blogspot.com. Acesso: dia, mês e ano. Ex. 30 set.2015

Literatura de engenho





José Luiz Gomes da Silva

Confesso que fiquei fascinado pela leitura do livro do professor Diego José Fernandes Freire, "Contando o Passado, Tecendo a Saudade", sobre a construção simbólica do engenho açucareiro em José Lins do Rego. Na realidade trata-se de uma tese, mas escrita sem os rigores - não raro chatos e estéreis - do campo acadêmico. Por sinal, muito bem escrita. Um calhamaço de 400 páginas, capazes de prender a atenção do leitor desde o início até a última página. Somos suspeitos para falar do assunto. Tudo que diz respeito à literatura regionalista nos interessam de imediato. Nossas leituras começaram com os textos de Machado de Assis. Somente depois, bem depois, é que comecei a ler os romances da literatura de engenho, escritos pelo escritor paraibano, José Lins do Rego. Um livro após o outro, verdadeiramente encantado com a vida na bagaceira. 

Começamos e não mais paramos. Os estudiosos costumam estabelecer alguns ciclos específicos de sua produção literária, como os livros que compõem o chamado "ciclo da cana-de-açúcar", que vai do período de apogeu dos engenhos de fogo morto até a sua completa decadência, motivada pelo avanço tecnológico e as mudanças das relações sociais de produção, com o fim do período escravocrata. O próprio escritor cometeu idas e vindas em sua obra, penso que imbuído pelo sentimento de "saudade" dos seus verdes anos no Engenho Corredor, que pertencia ao seu avô. 

Não tivemos a oportunidade de conhecer engenhos na nossa infância. Quando muito, algumas viagens pelos partidos de cana que margeiam a zona da mata do Estado de Pernambuco, ou mesmo a contemplação das inúmeras referências arquitetônicas - já em ruínas - dos antigos engenhos da região. As leituras desses romances nos transportavam àqueles tempos, como num passe de mágica. Ainda hoje, quando penso em proibir meus filhos de brincarem na lama, tomarem um banho de chuva ou mergulharem nos açudes, a lembrança de que nos vem à mente é a do personagem de "Meus Verdes Anos" que, acometido de fortes crises de asma, ficava prostrado numa cama enquanto os moleques faziam suas algazarras nos quintais e alpendres das casas grandes. Como "Meus Verdes Anos" é o mais auto-biográfico dos livros do autor, era o próprio José Lins naquele isolamento imposto pelos familiares.

A leitura do livro de Diego ampliou bastante nosso conhecimento sobre a literatura de engenho. trouxe-nos alguns fatos novos e, de certa forma, alvissareiros. Em inúmeros momentos, nos deparamos com um discurso construído em torno da influência do sociólogo Gilberto Freyre sobre o escritor José Lins do Rego. Aliás, coube ao sociólogo de Apipucos a construção desse discurso, salvaguardando as opiniões em contrário. Os dois mantinham uma relação de muita amizade e, de fato, trocavam muitas ideias sobre literatura. Casa Grande & Senzala e Menino de Engenho são quase do mesmo ano. A partir de um determinado momento, poder-se-ia afirmar que os dois faziam uma espécie de "dobradinha". Enquanto Gilberto se dedicava ao ensaísmo histórico, José Lins romanceava a vida nos engenhos. 

O que Diego insinua, no entanto, é que pessoas como Olívio Montenegro,que conhecia muito bem literatura e fez várias indicações de livro para o escritor paraibano, quiçá, possa ter exercido uma influência ainda maior sobre a carreira literária dele do que o autor de Casa Grande & Senzala. Coube a Joaquim Nabuco, no entanto, a condição de precursor da chamada literatura de engenho. Joaquim Nabuco viveu até os 08 anos de idade no Engenho Massangana, que pertenceu à sua família, e que hoje é administrado pela Fundação Joaquim Nabuco. Num dos capítulos do livro "Minha Formação", o diplomata pernambucana abre um espaço para descrever o engenho onde ele passou parte de sua infância, precisamente num capítulo que leva o nome do engenho: "Massangana".

Escrito bem antes da "Bagaceira", de José Américo de Almeida, e "Menino de Engenho", de José Lins do Rego, coube ao pernambucano a primazia de ter, digamos assim, inaugurado a literatura de engenho. Os pernambucanos, aliás, estão muito bem representados na roda literária da literatura de engenho. O romance "Senhora de Engenho", de Mário Sette, outro pernambucano, se configura como outra obra tão importante quanto a de Joaquim Nabuco, no contexto deste circuito literário. Perdão se não usamos o termo correto.

Há algo curioso que sempre mencionamos quando tratamos do Engenho Massangana. No documentário "Cabra Marcado para Morrer" de Eduardo Coutinho, em certo momento, é mencionado que o líder camponês paraibano, João Pedro Teixeira, fugindo dos seus algozes, que já o ameaçavam de morte, vem para Pernambuco e passa a residir em Jaboatão dos Guararapes. Neste mesmo excerto, é posto que ele chegou a trabalhar no Engenho Massangana. 

O romance de Mário Sette também alcançou grande repercussão, tendo sido adaptado para o teatro, com direito à trilha de Capiba, gravada por Nelson Gonçalves. Trata-se da conhecida "Maria Betânia". O livro de Mário contou com várias edições, tendo vendido bastante para os padrões da época. O mais importante, entretanto, é que foi muito bem recebido pela crítica. Mário Sette, diferente de José Lins, Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre, não foi um menino de engenho, na verdadeira acepção da palavra. Menino urbano, filho de comerciantes, sem as contas pagas pela família, Mário não conheceu la dolce vita. Conta os familiares que, numa viagem à cidade de Tracunhaém, a trabalho, em idos bem remotos, Mário apaixonou-se pela cidade e resolveu escrever seu romance rural. Ao contrário de Nabuco, Mário Sette também não teria avançado muito nos círculos acadêmicos, tendo concluído apenas o ensino médio. 

Mário escreveu bastante, em mais de um gênero. No site mantido pela família é possível ter a dimensão dessa produção literária. Veja o que diz o seu filho, Hilton Sette, sobre a experiência do pai, que, conforme já afirmamos, foi até à cidade de Tracunhaém, inspecionar a agencia postal local:

Meu pai evoca em MEMÓRIAS ÍNTIMAS e em APONTAMENTOS AUTOBIOGRÁFICOS (inéditos) as suas reações de agrado e encantamento experimentadas nessa curta e imprevista excursão à Zona Canavieira. Numa certa manhã, a novidade de uma viagem de trem, o sol a doirar o verde da paisagem, os partidos de cana beirando a linha férrea, ocorrências de matas coroando os cimos das elevações, o rumorejar de riachos nos fundos dos vales, aqui e ali a presença de banguês com suas casas-grandes, suas "moitas", seus bueiros fumegantes, seus aromas de mel cozinhando.

Como citar este texto:

SILVA, José Luiz Gomes da. Literatura de engenho (crônica). Pesquisa Escolar do Nordeste. Disponível em: http://pesquisaescolardonordeste.blogspot.com acesso em: dia, mês e ano. Ex: 26 ago.2015